'Fiquei com medo de a sensação sumir': Laís Souza sente o dedo após 11 anos e diz que toparia participar de estudo clínico
10/10/2025
(Foto: Reprodução) Laís Souza e as novas sensibilidades
O vídeo começa com um ruído de celular e um riso fora de quadro. A mão da ex-ginasta Laís Souza está apoiada no sofá quando, de repente, ela diz: “Bem-vinda [nova sensibilidade]”. Não é metáfora. É o dedo mínimo da mão esquerda, que voltou a responder depois de onze anos.
A sensação não chega a ser exatamente um toque — é pressão, formigamento, algo entre o nada e o quase. “Devo sentir uns três a cinco por cento”, calcula. O vídeo não foi planejado para registrar uma descoberta. Laís e a namorada apenas gravavam um momento banal de carinho quando, por acaso, a câmera flagrou o retorno do movimento no dedo.
Surpresa, ela pediu que a namorada apertasse o mesmo ponto várias vezes, com medo de que a sensação desaparecesse. À noite, já na cama, testou de novo. Continuava ali.
Não procurou os médicos. “Não tem muito o que fazer”, explica em entrevista exclusiva ao g1. Eles já tinham dito que pequenas melhoras são possíveis mesmo depois de anos, quando fibras preservadas voltam a conduzir sinais.
“O corpo é incrível. Às vezes o estímulo está por um fio e algo resolve.”
Desde sempre, o corpo da ex-ginasta foi assunto de trabalho. A partir de 2014, entretanto, esse assunto teve de mudar de lado. A agilidade deu lugar à paciência. Laís aprendeu a decifrar sinais que ninguém mais entende: ardência, espasmos, arrepios que podem significar dor, frio ou vontade de urinar.
Aprendeu também a detectar o que não sente. Uma vez, passou horas com o tênis dobrado atrás do calcanhar sem perceber. O corpo tentou avisar de outro jeito: uma ardência que vinha com arrepio e dor de cabeça. “Era o calcanhar. O tênis estava dobrado e eu não tinha sentido”, conta.
Laís treina cuidadores para reconhecer pintas, manchas, calos, dobras de roupa. Sabe que, se errar o tempo, o corpo responde com infecção, febre, ferida. A atleta que vivia de impulso hoje opera por antecipação. E estuda. O tempo todo.
“Meu grande músculo é o cérebro”, afirma.
A rotina é cronometrada: cuidados e higiene pela manhã, fisioterapia à tarde, trabalho e palestras no resto do dia. “Parece empresa”, diz, sobre a própria casa e os funcionários com quem trabalha. Tudo tem lugar e regra. Tirou, devolve. Sujou, lava. Se não, ela se perde.
A ex-ginasta Laís Souza
Reprodução/Instagram
Aos 36 anos, aprendeu a planejar até o improvável. Treina todos os dias para estar pronta caso alguma pesquisa científica avance o suficiente para se tornar tratamento. Acompanha de perto os estudos brasileiros com polilaminina — uma proteína derivada da placenta que vem sendo testada para regeneração nervosa — e também o projeto da Universidade de Tel Aviv, em Israel, que desenvolve uma medula espinhal em 3D feita com células do próprio paciente. Nos testes com animais, a técnica já restaurou parte da mobilidade.
“Quero estar pronta quando chegar a hora. Se o movimento voltar, preciso estar forte. Se as pernas reagirem, quero conseguir me levantar. Se o braço recuperar a sensibilidade, quero segurar um copo de água, quero poder fazer carinho nos meus cachorros.”
Fala de ciência com o mesmo pragmatismo com que organiza o dia. “Tenho esperança, mas tento não criar expectativa. Sei que pode não dar certo. Talvez, se o acidente tivesse acontecido hoje, as respostas da medicina seriam outras — mais rápidas, com base em resultados de estudos clínicos que ainda estavam longe há onze anos.”
Relembre o acidente
Laís Souza tinha 24 anos quando se chocou contra uma árvore durante um treino de esqui aéreo, nos Estados Unidos, às vésperas das Olimpíadas de Inverno de Sochi. Havia migrado da ginástica artística — onde representou o Brasil em duas Olimpíadas e conquistou um quarto lugar no Mundial de 2006 — para o novo esporte há menos de um ano. Naquele 27 de janeiro de 2014, a tentativa era apenas um salto de rotina.
O impacto quebrou duas vértebras cervicais, C3 e C4, esmagando a medula. Laís lembra pouco: desmaiou, acordou, desmaiou outra vez. “Vomitei, aspirei o vômito, o que afetou meus pulmões. Mas não me lembro de muita coisa. Dormia e acordava”, conta.
Só percebeu a gravidade dias depois, quando pediu à mãe que colocasse o celular em sua mão para mandar uma mensagem aos amigos. O aparelho escorregou, e ela não conseguiu segurá-lo. Pediu de novo. Caiu outra vez. “Foi aí que a ficha caiu.”
A mãe, que acompanhou tudo de perto, ouviu dos médicos o prognóstico mais duro: se sobrevivesse às primeiras 12 horas –o que era improvável–, dependeria de máquinas para respirar, comer e urinar. Nada disso se confirmou.
Ainda assim, onzparaanos depois, a mãe continua por perto. Quando passa a noite com a filha, entra no quarto a cada três horas, faz a sondagem, muda o decúbito, confere se está tudo certo. “Minha mãe é minha melhor amiga. Sabe tudo da minha vida”, conta.
A ex-ginasta Laís Souza agora é palestrante
Reprodução/Instagram
O abuso sexual
Desde o acidente, o corpo de Laís também se viu em vigilância. “A gente que passa pela situação enxerga o que o médico não vê”, diz. A ardência nas mãos, por exemplo, pode significar quase qualquer coisa — de gases a infecção urinária. O aprendizado foi fisiológico e filosófico.
O corpo voltou a ser tema público quando Laís revelou ter sido vítima de abuso sexual por parte de cuidadores. Ela contou que os episódios ocorreram em momentos de completa vulnerabilidade, quando estava deitada ou dormindo, sem sensibilidade em boa parte do corpo.
“Já fui abusada antes, quando tinha quatro anos, e depois do acidente, que foi quando realmente fiquei supervulnerável. Foram abusos inesperados. Eu estava totalmente vulnerável: deitada, dormindo… não estava nem vendo o que estava rolando. E não tenho sensibilidade em 100% do corpo. Sinto que está tudo certo e a pessoa se aproveita daquilo”, conta.
Ela denunciou os casos, mas teve medo de sofrer retaliação por parte dos abusadores, embora não tenha relatado ameaças. Desde então, passou a tratar a confiança como questão prática. “Minha confiança é bem abalada. Para confiar em alguém, tenho que saber realmente quem está ali, conversando, convivendo.”
Depois disso, quando um novo cuidador chega, Laís treina cada gesto. “Explico como quero, deixo cada coisa no seu lugar para que não haja nenhum ponto em que ele precise dar um passo que eu não saiba. Tento fazer com que tudo esteja sob controle.”
Instalou câmeras em casa, evita consultas sozinha e se mantém em alerta constante. Desde então, não aceita mais profissionais homens para tarefas íntimas. O serviço de home care que a atende chegou a enviar um cuidador substituto. Era um homem, e Laís dispensou o atendimento assim que ele chegou.
“Para mim é impossível, não dá. Por mais fofo que ele seja, é um gatilho, não consigo. Não é nada pessoal com a pessoa”, relata.
Acessibilidade, ou a falta dela
Fora de casa, Laís enfrenta outro tipo de hostilidade. Fala da falta de acessibilidade como quem descreve o tempo: sem surpresa, mas com precisão. Restaurantes sem rampa, lojas inacessíveis, elevadores de lixo usados como entrada alternativa.
“Às vezes fico no carro e peço para quem está comigo comprar o que quero. A cadeira de rodas, na maior parte das vezes, não passa pela porta das lojas. Quando passa, não tem espaço dentro dos estabelecimentos para que eu consiga me mover.”
O isolamento imposto por essa falta de acesso acabou levando Laís de volta para dentro — da casa e de si mesma. Durante a pandemia, retomou um hábito antigo: pintar. “É uma atividade parada, mas me dá a mesma adrenalina do dever cumprido que o esporte me fazia sentir”, explica.
As pinturas são figurativas e vibrantes, feitas com guache, sempre com ajuda de um cuidador. “Quando a arte termina, é como se o corpo tivesse se mexido.”
A introspecção virou também curiosidade científica. Laís voltou a estudar: leu sobre o funcionamento do sistema nervoso, as etapas da cicatrização, a neuroplasticidade. Acompanhou estudos internacionais e se inscreveu em grupos que monitoram terapias experimentais para lesões medulares. “Quero estar pronta quando chegar a hora”, diz.
Palestras, rotina e o trabalho de existir
No palco, o corpo volta a ser centro. Já fez mais de duzentas palestras, de segurança do trabalho à inclusão. Às vezes, sobe ao palco com a pressão baixa, às vezes, com espasmos.
“Tem que cuidar para não cair, para não dar tremor.” Fala sem roteiro. “De coração”, diz, sem romantismo. No meio do discurso, sente o peso do próprio nome — símbolo de superação que nunca quis ser.
“Tem dia que não quero me superar. Só quero ficar deitada e chorar. Ou só ficar deitada, sem chorar”, ri.
O acidente redefiniu o corpo, mas não o anulou. O dedo que mexeu, por acaso, é o mesmo que lembra a dimensão do possível. Laís não chama de milagre. Chama de corpo.